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Réu por submeter idosa a trabalho análogo à escravidão por 72 anos tentou orientá-la a mentir ao MPT: 'Não diga que trabalhou para minha mãe ou você vai f* com ela'

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Por PATRICIA em 11/03/2024 às 04:10:24

Mãe e filho foram denunciados por impor jornadas exaustivas e não remuneradas a uma idosa . André Luiz Mattos Maia também ficava com o cartão do INSS da vítima e tinha a senha. Mãe e filho viram réus por manter empregada doméstica por 72 anos sem receber salário

Um homem que virou réu por submeter uma idosa a condição análoga de escravidão, durante 72 anos, teria orientado a mulher a mentir em uma inspeção do Ministério Público do Trabalho (MPT).

De acordo com a denúncia do Ministério Público Federal, André Luiz Mattos Maia Neumann disse para a vítima, Maria de Moura, que hoje tem 88 anos, dizer aos fiscais que nunca trabalhou para a sua mãe.

Segundo o MPF, André segurou o braço de Maria, antes de ela ser ouvida, e falou: "Você não diga que trabalhou para a minha mãe, senão você vai... f* com ela".

A denúncia foi aceita pela Justiça, e ele e sua mãe, Yonne Mattos Maia, viraram réus.

O caso mais longevo deste tipo já encontrado no Brasil pelos fiscais do ministério foi revelado em 2022 pelo Bom Dia Brasil, e o Fantástico deste domingo (10) deu mais detalhes.

Segundo a denúncia, André Luiz e Yonne mantiveram Maria de Moura como trabalhadora doméstica, "executando jornadas exaustivas e não remuneradas, em condições degradantes, sem liberdade para se locomover e restringindo sua capacidade de escolha."

André responde também por coação.

Maria de Moura foi a pessoa que ficou mais tempo em situação análoga a de escravidão, segundo o MPT

Reprodução

Em um vídeo gravado em 2021, e posteriormente encaminhado ao Ministério Público, um grupo de pessoas discute com André ao tentar visitar a idosa:

André: "Não é cárcere privado, não. Se fosse cárcere privado, eu não estava aí. Eu não vou receber ninguém, porque ela tá doente. Ela tá doente".

Mulher: "Claro que ela tá doente. Ela não sai dali, ela não toma um sol. Ela não vê a família. Ela não tem quem... Ela tá doente mentalmente".

André: "Pode ir para delegacia. A casa é minha, e eu faço o que eu quiser".

A discussão fica mais exaltada.

André: "Agora, vocês acham que é cárcere privado? Vai lá e assume. Assume ela, então. Assume ela, então. Assume ela, então".

Homem: "A gente pode levar ela. A gente leva, então".

Mulher: "Abre aí que a gente vai levar ela. Abre lá que a gente vai levar ela. Abre que a gente vai levar ela! Abre, André!"

André: "Eu não vou abrir!"

Homem tinha cartão e senha do INSS da vítima

Uma mulher que passou 72 anos em situação de exploração no Rio de Janeiro é o caso mais longo de situação análoga à escravidão registrado no Brasil

reprodução/ TV Globo

Maria nasceu em Vassouras, interior do Rio de Janeiro, em uma família muito pobre de 10 irmãos. Aos 12 anos foi morar com a família dos patrões do pai, na fazenda onde ele trabalhava. O dono da fazenda era o pai de Yonne.

Dona Maria não tinha plano de saúde. Ela recebe uma aposentadoria como autônoma, graças ao apoio da irmã. Os sobrinhos também acompanhavam a situação da idosa.

Agora com 87 anos, Dona Maria Moura quase não sai de casa e está praticamente cega. Além da aposentadoria, recebe um salário mínimo da família Mattos Maia por decisão liminar da Justiça, enquanto corre o processo.

Segundo Eduardo Benones, procurador da República, outro crime é investigado no caso: a apropriação do cartão magnético especialmente de idosos ou de pessoas que não podem responder por si mesmas.

André admitiu que estava em posse do cartão do INSS e tinha a senha da vítima.

O debate sobre o quanto a idosa deveria ter recebido ainda não terminou. "A gente contabilizou todos os 72 anos em que ela trabalhou e isso dá um montante de R$ 1,4 milhão, só de verbas trabalhistas", diz Juliane Mombelli, promotora do MPT.

O órgão também cobra danos morais individuais pela condição que essa trabalhadora teve toda a sua vida.

"E ainda, quando há uma verificação de um ilícito trabalhista como esse que é uma compensação do ilícito para a sociedade. A sociedade como um todo foi afetada", acrescenta.

Cama 'aos pés' da empregadora

Mombelli diz que chamou a atenção na denúncia do MPT as fotos dos lugares onde dona Maria e a patroa dormiam.

"Não havia um lençol, uma coberta, um travesseiro. Era um sofá, onde ela [Maria] passava as noites aos pés da empregadora. Para atender a todas as necessidades da empregadora."

"Ficou estabelecido de que havia jornada exaustiva, que os trabalhos eram também trabalhos feitos de maneira pesada. Um trabalho que sobrecarregava a dona Maria. Havia, na verdade, uma restrição à liberdade dela", diz Benones.

A defesa dos acusados insiste que Maria de Moura seja ouvida no julgamento. Até agora, o pedido não foi atendido porque ela apresenta sinais de demência e está com um pedido de interdição em andamento na Justiça.

"Ela conviveu nessa família a vida toda. Ela frequentava samba, desfiles, viajava com a família. Estão tratando a Maria de Moura como se ela fosse um objeto. Estão subtraindo dela a humanidade dela. De ouvi-la. [De perguntar] 'Você quer ficar com quem?", diz Marcos Vecchi, advogado de defesa.

Relação degradada

Para pessoas envolvidas na acusação e pesquisadores, porém, em muitos casos, a ideia de "quase da família" é um alerta. Pode camuflar uma relação de trabalho degradada que fica ali escondida pela falsa ideia de relação de afeto.

Por isso, mesmo depois de décadas, uma pessoa pode não entender qual é exatamente o papel dela dentro da casa. E, se ela não entende, ela também desconhece os seus direitos seja como empregada, seja como parte da família.

"Ser quase da família na verdade significa ser quase humano. Pessoas que partem desse pressuposto, elas no seu íntimo estão entendendo que existe uma desigualdade racial inata. 'Olha só, ela tem um cantinho pra dormir. Ela come de graça. Olha só. Ela usufrui da convivência familiar'. Então esse quase da família é um subterfúgio para as pessoas que na verdade entendem que as pessoas não brancas não são também tão humanas assim", observa a professora da Universidade Federal Fluminense e historiadora Ynaê Lopes dos Santos.

Foi essa ideia que permeou a denúncia do Ministério Público Federal.

"Depois de muitos e muitos e muitos anos servindo as mesmas pessoas, a pessoa tem a sua consciência capturada. Ela não consegue se enxergar na condição de vítima, porque ela é tratada como se fosse supostamente uma pessoa da família", diz Benones.

"A grande maioria dessas trabalhadoras são mulheres que vieram egressas do trabalho infantil. Então, essa prestação de serviços começou quando ainda eram crianças. Ainda não tinham noção mesmo de cidadania", acrescenta Mombelli.

"Será que se ela fosse branca, teria tido todo esse efeito? (corta) Digamos que a Dona Maria de Moura, é uma senhora de 86 anos. A mesma coisa! Só que branca. Será que eles estariam falando isso? Eu tenho quase convicção, aliás, tenho total convicção que não", diz o advogado de defesa Marcos Vecchi, que chamou a interpretação de "racismo estrutural inverso".

Fonte: G1

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