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O que era o entrudo, precursor do carnaval que chegou a ser proibido em cidades brasileiras

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Por PATRICIA em 10/02/2024 às 04:25:26

Brincadeiras diversas marcavam o período por influência dos colonizadores portugueses. A partir do século 19, festa das classes mais pobres nas ruas foi vetada por setores que tentavam civilizar o país. Pintor francês Jean-Baptiste Debret retratou o entrudo nas ruas do Rio de Janeiro no início do século 19

BBC

Um tempo em que passear pela rua era correr o risco de ser encharcado com um balde de água. Ou ser empurrado para se sujar na lama. Ser atingido por objetos atirados pelas janelas. Ou até encontrar grupos cantando e dançando à sua maneira. Em suma, ser alvo de brincadeiras ou ver pessoas se divertindo do jeito que queriam.

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Esse tempo era o entrudo, um nome dado aos dias que antecediam a Quaresma e que acolhiam as diferentes formas de brincar e extravasar antes dos dias de restrições e penitências. O entrudo foi o precursor do carnaval no Brasil e refletia os festejos trazidos pelos colonizadores portugueses.

Com as tentativas de modernizar e civilizar o país depois da Independência, o entrudo foi classificado como uma festa grosseira, selvagem e até prejudicial para a imagem do Brasil. Passou a enfrentar críticas e proibições.

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No Ceará, a festa foi vetada pela Secretaria de Justiça em 1893. A proibição foi reiterada pelo intendente de Fortaleza, Guilherme Rocha, no ano de 1905. No Rio de Janeiro, nem as proibições que se repetiram por décadas conseguiram sufocar as expressões populares do período.

Uma solução das elites para tentar romper com o passado colonial da festa descrita como "porca e bruta" foi importar uma celebração aos moldes venezianos e parisienses, com os bailes de máscaras, fantasias luxuosas e personagens como Pierrot, Arlequim e Colombina. Da vontade de se diferenciar da festa "incivilizada", nascia o Carnaval dos clubes e da "boa sociedade".

Mas como surgiu o entrudo?

Uma das brincadeiras mais conhecidas do entrudo era jogar água nas pessoas que passavam pelas ruas

Arquivo Nirez/Reprodução

Quando chegaram para colonizar o Brasil, os portugueses trouxeram muitos aspectos além do idioma. Vieram também os costumes, as comidas, os festejos. Isso inclui o entrudo, que existia na Europa em formatos diversos em cada localidade.

Conforme o professor do programa de pós-graduação em História da Arte da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Felipe Ferreira, a festividade tem origem ainda no século 11 e foi se formando lentamente, ainda sem ter um nome. Eram apenas os dias de praticar excessos, comemorar e beber antes da Quaresma — período estipulado pela Igreja Católica com restrições e preparação espiritual para a Páscoa.

A ideia era fazer o que podia até a Quarta-Feira de Cinzas. Depois dela, começaria uma série de restrições: não comer alimentos gordurosos, cantar, dançar ou festejar, como explica o professor.

Os nomes para esse período foram tão variados como as celebrações. Segundo o pesquisador, as pessoas começaram a se referir aos dias de festa como "os dias do adeus à carne", o que acabou originando as denominações do "carnevale" no italiano e do Carnaval no português.

"Cada lugar faz as suas festas da maneira que deseja, não existe uma forma de brincar. Em Portugal e na Península Ibérica, essas brincadeiras que acontecem nos dias de Carnaval vão se chamar entrudo", afirma Felipe Ferreira.

Existem também hipóteses sobre a origem deste nome. Uma bastante disseminada é que entrudo seja uma referência à "entrada da Quaresma". Outra delas afirma que a palavra também significa "bonecos grotescos", em alusão a bonecos usados nas celebrações.

De qualquer forma, o nome foi usado para o conjunto de festividades do período. Como ressalta Felipe, estas práticas em Portugal não eram comuns entre as elites ou na corte. Eram hábitos das classes populares — exatamente o extrato da população portuguesa que veio povoar o Brasil a partir do século 16.

Nas pesquisas, ele teoriza que este é um dos motivos para a força e o alcance do que veio a ser o Carnaval brasileiro nos séculos seguintes. Isso porque, em Portugal, o entrudo não era festejado em todo o território. Nem o Carnaval de lá acabou sendo relevante como o daqui.

E como era o entrudo no Brasil?

Não é tão fácil ter ideia a diversidade do entrudo nos primeiros séculos de colonização no Brasil. O certo é que a prática foi disseminada pelos territórios e adquiriu características próprias em cada lugar.

Na historiografia, as primeiras referências a um período de Quaresma no Brasil são entre 1520 e 1530, aponta Felipe Ferreira. Assim, é possível supor que o entrudo já estava presente também desde o início da ocupação portuguesa.

O pesquisador elenca alguns exemplos das brincadeiras e atividades que aconteciam nas ruas durante o entrudo. Como as danças e as músicas, os atos circenses, pessoas exibindo habilidades para domar animais.

Outras iam mais para o lado das pegadinhas com transeuntes ou conhecidos: chamar alguém para jantar e servir sopa apimentada, sujar as maçanetas das portas com gordura fedorenta e até pregar uma moeda no chão para enganar quem quisesse apanhá-la nas ruas.

"Durante uns 300 anos, até 1800 e um pouquinho, é isso que está acontecendo no Brasil inteiro: diversos tipos de festa. Não tem um formato essa festa. É brincar, se divertir, pregar peças, dançar. Então tudo isso é um pouco do que a gente sabe que tem nesse período, mas não tá muito bem descrito [em pesquisas sobre o tema]", resume o historiador.

As características mais conhecidas do entrudo no Brasil vêm de relatos do que acontecia nas ruas do Rio de Janeiro no século 19. Como capital brasileira, a cidade atraía a atenção de outras cidades brasileiras e recebia muitos visitantes estrangeiros.

Um deles foi o pintor francês Jean-Baptiste Debret foi um pintor, que integrou uma missão artística no Rio e retratou cenas do cotidiano e grandes eventos do Brasil Colônia.

Na tela "Cena de Carnaval" (ver imagem acima), de 1823, ele imortalizou a prática de fabricar e vender o limão-de-cheiro, uma espécie de bola feita a partir da laranja e da cera. Neles, eram colocados os líquidos usados nas brincadeiras: água, perfume, líquidos fedorentos ou até mesmo urina.

"Se a batalha de limões, graças a essa familiaridade espontânea tolerada durante três dias seguidos, se torna muitas vezes a causa de novas relações entre beligerantes, é ela, por outro lado, motivo de isolamento para as pessoas tranquilas, que se fecham em casa e não ousam sair à janela", escreveu o pintor francês em livro sobre o que viu no Brasil.

Outras brincadeiras da época também aparecem na tela de Debret. Uma mulher negra tem o rosto pintado com polvilho. Uma criança negra se diverte molhando os adultos usando uma seringa de lata.

Estes relatos de estrangeiros e locais acabaram cristalizando uma visão do que era o carnaval brasileiro da época. Assim, o entrudo do Rio de Janeiro foi tomado como referência para outras cidades brasileiras. E para a imagem que se tinha do Brasil no exterior.

O pesquisador Felipe Ferreira aponta que a cidade carioca tinha particularidades nesse brincar. Uma delas era a predominância de pessoas negras nas ruas, fossem escravos ou negros libertos. No período, as classes mais abastadas pouco deixavam as casas, pois evitavam as condições precárias das ruas.

"Existia um tráfego de escravos em torno dos chafarizes carregando baldes para cima e para baixo para abastecer as casas. Então a brincadeira mais clássica era jogar água em quem tivesse perto. Era aquela coisa: se você tá passando nas ruas do Rio, seja negro ou o que for, você tá arriscando levar um balde d'água na cabeça. É claro que não é essa liberdade toda: se um escravizado jogar um balde d'água na cabeça de um senhor, ele vai preso", explica Felipe.

Além de molhar os outros usando baldes, seringas ou bisnagas, os brincantes também passavam graxa no rosto dos brancos e talco no rosto dos negros.

Os europeus viravam alvo de piadas e imitações pelas ruas. E tudo isso entrou na generalização do que era o entrudo brasileiro. Os relatos continham palavras como "sujeira", "imundície" e "desordem".

O pesquisador complementa que nem mesmo a caracterização sobre o entrudo do Rio de Janeiro capta a diversidade do que era vivido nesses dias de festa. No entanto, é certo que os relatos da capital brasileira inspiraram as formas de brincar em outras cidades.

Do entrudo aos carnavais luxuosos

Em Fortaleza, a tentativa de superar o entrudo levou à tradição dos carnavais luxuosos ligados aos clubes recreativos

Arquivo Nirez/Reprodução

Os poucos relatos históricos sobre as brincadeiras do entrudo em Fortaleza se assemelham às práticas dos cariocas no século 19. Na capital cearense, notadamente as classes mais populares se serviam de baldes, cuias e seringas para molhar os outros.

Ao entrar nas casas, os brincantes não poupavam quase ninguém. Poderiam até fazer um "batismo", inserindo a cabeça das pessoas à força nos recipientes com água. Era também comum sujar as pessoas com zarcão, farinha e pós de sapato. Rapazes eram perseguidos por moças, que corriam de penico na mão.

A partir da metade do século 19, a capital vivia sua "Belle Époque" e era influenciada pela cultura francesa. Enriquecida pela exportação do algodão, a elite econômica cearense empreendia reformas urbanas e projetava uma cidade civilizada aos moldes europeus.

Começaram nesta época a surgir regras contra o entrudo, visto como uma prática de vadios e moleques. Foi regulamentada a substituição dos baldes pelas laranjas de borracha para esguichar água de cheiro. Depois, vieram as proibições à festa, como o decreto de 1905. Enquanto isso, os principais clubes frequentados pelas elites se organizavam em sociedades carnavalescas.

Eram dois os principais clubes recreativos: o Clube Cearense e o Clube Iracema, que levavam seus blocos às ruas. Os jornais elogiavam a elegância das fantasias e dos desfiles de carros, seguindo moldes das festas europeias e inaugurando o que chamavam de era de esplendor.

Blocos vinculados aos clubes recreativos continuavam a ter força na década de 1930 em Fortaleza

Arquivo Nirez

Conforme o jornalista e pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, conhecido como Nirez, o entrudo foi perdendo força na virada do século 20 em Fortaleza. Além dos bailes e das atividades dos clubes, o Carnaval das ruas conheceu uma nova fase com os blocos e cordões na década de 1930. Esta dinâmica foi impulsionada pelos prêmios organizados pela rádio local.

O percussionista e organizador do bloco Luxo da Aldeia, Tiago Porto, pesquisou o período carnavalesco de Fortaleza entre 1910 e 1930. Enquanto explorava o tema, o historiador encontrou várias crônicas de jornais que exaltavam os carnavais dos clubes e teciam críticas às festas das ruas.

O bloco Prova de Fogo, que tomava as ruas de Fortaleza no Carnaval, teve o primeiro desfile em 1936

Arquivo Nirez/Reprodução

Às manifestações populares, eram atribuídas a desordem, a possível violência e a deselegância das fantasias. Mas elas seguiam existindo e se reconfigurando, agregando os setores médios e subalternos da sociedade. O bloco Prova de Fogo foi um dos precursores das agremiações populares na capital cearense, com o primeiro desfile no ano de 1936.

Com os blocos e cordões desfilando na avenida Duque de Caxias, havia espaço ainda para o blocos dos sujos — os arrastões que vinham dançar ao fim das apresentações oficiais.

"Esse bloco dos sujos recebia também uma crítica nos jornais. Os textos diziam que aconteciam brigas e que eles tinham a forma desordenada de brincar. Essas tensões apareciam na imprensa por conta das diversas formas de festejo", detalha Tiago Porto.

O Cordão das Coca-Colas reunido com o compositor cearense Lauro Maia (centro), na década de 1940.

Arquivo Nirez/Reprodução

Na década de 1930, a capital cearense conhecia um jeito próprio de brincar nas ruas. E de fazer músicas carnavalescas, com as composições de Lauro Maia e Luiz Assunção.

Tanto Tiago Porto como o memorialista Nirez apontam essa originalidade do carnaval nas expressões do período. O balanceio de Lauro Maia se formava como gênero musical e imprimia uma nova estética sonora. O desfile dos blocos e cordões dispunha de estandartes, orquestras com instrumentos de sopro e um baliza — integrante que abria o caminho fazendo malabarismos com um bastão.

O bloco Alfaiates Veteranos saía pelas ruas de Fortaleza com a figura do baliza na década de 1930.

Arquivo Nirez/Reprodução

A lógica foi mudando quando, em 1965, um cearense influente voltou a Fortaleza trazendo os estatutos das escolas de samba do Rio de Janeiro.

Como conta Nirez, a Prefeitura adotou o novo modelo para avaliar os blocos e cordões cearenses. Nos desfiles seguintes, os grupos não tinham como pontuar ao apresentar balizas e orquestras. Seriam avaliados se tivessem comissão de frente, porta-bandeira e bateria, por exemplo.

As agremiações precisaram se adaptar a um modelo que não tinha tanto a ver com a evolução da festa na cidade. Até mudaram de nome para virar escolas de samba. Era como se, mais uma vez, o jeito de brincar fosse importado. Para Nirez, este novo estilo levou a um declínio gradual dos grupos populares da época.

Conforme Tiago Porto, falar sobre o Carnaval continua sendo uma oportunidade para pensar as tensões sociais de uma cidade, com quais tipos de festa são vistas como válidas ou indesejáveis.

"Eu acho que o Carnaval é sempre essa disputa, é sempre essa luta contra a segregação. Se você olhar as manifestações dos principais estados brasileiros, essa segregação vai estar representada. Por mais que se tenha uma festa pública, vai tentar se colocar um camarote ou uma área VIP mostrando essa segregação. E aí é que tá a beleza do Carnaval: como ele sobrevive para além dessas disputas", opina Tiago Porto.

Passando por tantas fases, a festa continua se alimentando da mistura de elementos e culturas. Ela vive de mudanças e permanências. No Rio de Janeiro, por exemplo, as diversas proibições do entrudo não conseguiam sufocar a vontade do povo de brincar nas ruas ou nas casas.

No interior do Ceará e de outros estados nordestinos, a brincadeira do mela-mela pode ser uma alusão às tradições do entrudo. Nestes locais, permanece a sensação de que sair para as ruas no Carnaval é correr o risco de se sujar em verdadeiras guerras com goma e amido de milho.

Assista aos vídeos mais vistos do Ceará:

Fonte: G1

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