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Projeto de leitura em presídios do AC é aliado na ressocialização: "despertar a mudança", diz ex-reeduncando que se formou e lançou livro

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Por PATRICIA em 20/10/2023 às 20:25:27

Nesseilde Andrade tem 43 anos e viveu 4 anos e 8 meses preso pelo crime de tráfico de drogas. Em agosto deste ano, lançou o livro "Desvendado por Deus", onde conta sobre processo de reintegração na sociedade por meio da educação, do trabalho e da fé, todos estes aflorados no presídio em mecanismos de ressocialização de detentos. Nesseilde Andrade é ex-reeducando do Complexo Penitenciário de Rio Branco e lançou livro sobre como educação e fé mudaram sua vida

Arquivo pessoal

O filósofo francês Voltaire talvez não imaginaria que a frase "a leitura engrandece a alma" causaria tanto impacto no cenário educacional mais de dois séculos depois, e mais especialmente na vida do acreano Nesseilde Sousa de Andrade, de 43 anos. Ele é um dos ex-reeducandos do Complexo Penitenciário Francisco de Oliveira Conde, em Rio Branco, onde cumpriu a pena determinada pela Justiça e saiu da criminalidade após ter contato com a educação, com livros e com o processo de ressocialização ainda dentro do presídio.

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Desde 2019, ano em que colou grau, Nesseilde é licenciado em História pela Universidade Federal do Acre (Ufac). Três anos depois, mais precisamente em agosto deste ano, lançou um livro intitulado "Desvendado por Deus". No entanto, há pouco menos de dez anos desde a sua última passagem pelo presídio, a realidade dele era outra. Atrás das grades, cumpria a segunda passagem, entre 2013 a 2015, pelo Complexo da capital por tráfico de drogas. Na primeira, ficou preso de 2007 a 2009 pelo mesmo crime.

Foi diante destas circunstâncias que Nesseilde resolveu, um ano após a última pena dele, que queria escrever um livro para relatar o que viveu, desde o submundo do tráfico até as dificuldades dentro do presídio, e mostrar que há chance de largar a criminalidade.

"A intenção maior era mostrar a possibilidade de mudança, de transformação. Todo ser humano que passa por aquelas circunstâncias [de estar preso], quem já foi uma ou duas vezes como eu fui, a sociedade fica desacreditada", disse.

Sem dar muitos spoilers, o livro retrata suas experiências espirituais por meio da leitura da Bíblia, que diz ter lido duas vezes por inteiro dentro da cela. O autor também revela a realidade por trás das grades, narrando, com detalhes, a vida cotidiana em uma prisão, dramas emocionais e psicológicos, relação de poder entre os presos e permanência do assédio feito pelo mundo do crime.

Nesseilde também conta que trabalhou em diversas repartições: organizava a horta, atuava na marcenaria, atuava na faxina... mas, onde ele mais se adaptou foi na cozinha. Segundo ele, o trabalho consistia em descascar legumes, descarregar caminhões com alimentos e montar as marmitas. Ao rememorar o tempo que ficou preso, disse que o processo de ressocialização foi importante para que ele fosse 'transformado por inteiro'.

"Se não fosse eu acreditar que poderia ter uma mudança, hoje estaria no 'mundão', talvez nem teria largado o tráfico. A virada de chave começou quando eu comecei a ouvir a palavra de Deus. A gente tem a consciência de saber quando estamos fazendo a coisa errada, mas cabe a você brigar contra você mesmo", disse.

O universo da leitura, contudo, foi o antídoto diante de toda a situação que vivia naquele local, onde ficou quatro anos e oito meses em regime fechado, se somadas as duas passagens. Sem ter lido nenhum livro por inteiro antes do encarceramento, no presídio começou a frequentar os espaços de leitura.

"Tudo começa mais ou menos da primeira passagem [na cadeia]. Acho que li 100 exemplares no período de pouco mais de dois anos. Quando eu voltei, o presídio tinha levado a biblioteca para outra penitenciária, então o único [livro] que tinha era a Bíblia, aí juntei essas duas coisas, porque para me transformar, comecei pela educação, pela literatura. Eu tinha o ensino médio completo, mas essa frequência com a literatura me deu muita capacidade de ampliar a mente e conhecer outras possibilidades de mudança", falou.

Presídios Leitores

Em um cenário onde 57 mil pessoas no Acre, com idade entre 15 anos ou mais, são analfabetas, ler um livro por completo chega a ser um privilégio. Ter acesso a esse recurso, então, nem se fala. Em todo o estado, 85,9% dos analfabetos são pretos ou pardos. Esse percentual é o equivalente a 49 mil pessoas com idade acima de 15 anos. Na qualificação por gênero, são 30 mil homens acreanos analfabetos com 15 anos ou mais, número que representa 52,6% do total.

O programa Presídios Leitores, que inicialmente nasceu como um projeto no final de 2021 e se desenvolveu no Grupo de Investigação, Leitura e Vida, de pesquisadores da Ufac, vem justamente para tentar reverter essa situação ao menos dentro dos complexos prisionais e fazer com que pessoas reclusas de liberdade, assim como aconteceu com Nasseilde, possam libertar a mente através da imersão ao universo literário.

A iniciativa surgiu a partir de uma discussão, promovida pela Secretaria de Educação, Cultura e Esportes (SEE-AC), sobre educação nas prisões. Segundo a coordenadora do programa, Maria José Morais, o intuito era de, inicialmente, ouvir o que estava sendo feito no âmbito de remição de pena pela leitura, que é uma política instituída legalmente em todo o Brasil.

Projeto 'Presídios Leitores' busca trabalhar processo de ressocialização de detentos por meio da literatura

Arquivo pessoal

Ela contou que, desde o início, 144 internos participam do programa em Cruzeiro do Sul, dentre leitores e não-leitores. Na prática, houve um salto de 104, já que na implementação, apenas 40 decidiram se envolver. Foi no segundo maior município do Acre que o projeto-piloto começou a criar asas.

"Em termos quantitativos, esse é um impacto interessante, mas para além desse impacto quantitativo, tem o impacto que não podemos medir, que é o de formação humana, de diminuição do encarceramento porque nós contribuímos para diminuir o encarceramento nesses ambientes prisionais. Tem esse impacto que é visível e concreto, e tem o que é invisível e que veremos ao longo da vida, como isso impactou pessoas ali dentro", frisou.

Atualmente, o programa é desenvolvido nos presídios masculino e feminino de Cruzeiro do Sul, no interior do Acre, e em mais duas unidades prisionais, em Tarauacá e Senador Guiomard, e conta com parceria do Instituto de Administração Penitenciária (Iapen-AC), Tribunal de Justiça do Acre (TJ-AC), SEE-AC e Academia Acreana de Letras (AAL), que contribuem para que o programa se encaminhe nos anos subsequentes à implementação.

O sistema de organização das bibliotecas do sistema prisional ocorre por meio de campanha de doação de livros e edital de fomento. Desde a criação do Presídios Leitores e por meio desta parceria entre as instituições estaduais e federais, uma biblioteca com mil livros foi aberta no presídio feminino do Juruá e, atualmente, a equipe trabalha para organizar a do masculino, também em Cruzeiro do Sul.

Somente no presídio feminino de Cruzeiro do Sul, mil exemplares são disponibilizados em biblioteca no local

Arquivo pessoal

Já a distribuição dos exemplares funciona da seguinte forma: os detentos podem receber um único livro por mês para lerem, já que cada unidade ainda tem acervo pequeno em relação à necessidade. As equipes do Iapen distribuem mensalmente para que os internos possam mergulhar no universo literário. Eles ficam com o livro pelo período de 1 mês para lerem e desenvolverem uma produção textual, que é o que vai comprovar a leitura do livro para ser emitida ao juiz, que é quem dá a remição de pena pela leitura.

Vale destacar que, segundo o artigo 5º da resolução 391/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é garantido aos privados de liberdade a remição da pena quando comprovarem a leitura de qualquer obra literária. Contudo, há um limite de 12 livros que são contabilizados. Em um cálculo básico de matemática, a cada 1 livro lido, 4 dias de pena são remidos. Se um detento lê 12 livros ao ano, então serão computados 48 dias efetivamente cumpridos na pena total do sentenciado.

"O programa Presídios Leitores produz o material para a produção desses textos, enviamos kits de produção textual todo mês. Os reeducandos produzem e nós avaliamos. Criamos uma plataforma com a Pró-Reitoria de Extensão da Ufac e essa plataforma é de gestão de avaliação. Temos um banco de, aproximadamente, 50 avaliadores que recebem os textos via plataforma, fazem a avaliação e nos devolvem com o parecer a respeito. A cada livro lido, ele produz um texto e recebe uma resposta dessa produção de texto, um comentário, um parecer dizendo 'olha, você foi muito bom nessa parte', ou 'olha, você precisa melhorar nessa parte', então tem essa troca pois acreditamos nesse processo como um processo de formação humana. Não é só uma avaliação para remir pena, mas para formar leitores", comentou.

Projeto Presídios Leitores conta com apoio da Ufac, Ifac, Iapen, TJ-AC e Academia Acreana de Letras

Arquivo pessoal

Caso a leitura do exemplar seja devidamente comprovado por meio da produção de texto, como ressaltado acima, o interno participante do programa tem a remição de quatro dias de pena por livro.

Maria José complementou ainda dizendo que cada unidade tem uma determinada maneira de distribuir as obras. Contudo, ressaltou que a maior dificuldade, para além da logística, é a do quantitativo de presos que não sabem ler e escrever.

"No Vale do Juruá, foi feita uma enquete para perguntar quem queria participar do programa de leitura, e foi feita com os internos que têm ensino fundamental completo, ensino médio e superior. A gente tem um desafio enorme de incluir em políticas de remição de pena pela leitura por conta do grande efetivo de internos que não dominam a leitura do código escrito, que não conseguem ler um texto. Esse é um desafio que estamos tentando contornar com políticas de inclusão, como por exemplo a avaliação de desenhos, em textos produzidos por áudios, que são experiências extremamente desafiadoras, mas que estão engatinhando na tentativa de incluir esse universo de internos que, infelizmente, não conseguem ler um texto", frisou.

Ressocialização em números

Segundo o Iapen, para participar de programas como o de remição pela leitura, por exemplo, é necessário, dentre os requisitos:

Ser sentenciado;

Ter ensino médio completo ou incompleto, ou em caso de existência de vagas, ter

escolaridade que o possibilite apresentar a resenha escrita ao final da leitura de cada obra

literária;

Bom comportamento nos últimos 6 meses.

Projetos voltados para a área educacional, tais como a preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio e para o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos para Pessoas Privadas de Liberdade ou sob medida socioeducativa (Encceja PPL), também entram na Divisão de Educação Prisional, que tem por finalidade promover a Educação no sistema com vista a preparação das pessoas em situação de privação de liberdade para a reinserção social com melhores níveis de escolaridade e qualificação profissional.

Segundo a Divisão, somente em 2022 foram 2.823 inscritos em projetos educacionais, sendo:

432 matrículas na Educação de Jovens e Adultos (EJA);

263 matrículas em cursos profissionalizantes;

894 matrículas nos projetos de leitura.

Neste ano, cerca de 500 estão estudando e mil inclusos em projetos de leitura.

Como alguns dos resultados do projeto de ressocialização por meio da educação, um egresso se formou em Direito pela Ufac e foi aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e outro concluiu o curso de Medicina.

"A educação e o trabalho são dois aspectos que contribuem para que eles voltem para o convívio social com habilidades e competências que possibilitam a reinserção deles no mundo do trabalho e mesmo dar continuidade aos estudos. Alguns deles não tem nenhum tipo de qualificação profissional ou aprendizado e saem com esses quesitos atendidos e facilita a reinserção deles", pontuou a chefe da Divisão de Educação Prisional do Iapen, Margarete Frota.

Escola "Fábrica de Asas" atende público privado de liberdade

Mardilson Gomes/SEE

O trabalho também é outra ferramenta de reinserção do reeducando à sociedade. As unidades penitenciárias do Acre, segundo o Iapen, possuem serviços como horta, faxina, cozinha, marcenaria, artesanato, postos de lavagem e casas de farinha, dentre outros. De acordo com dados do Departamento de Reintegração Social, dos 2 mil cumpridores de medidas atendidos pela Central Integrada de Alternativas Penais nos últimos cinco anos, apenas 83 foram presos novamente.

Além disto, 45 reeducandos do regime semiaberto participaram do curso de barbeiro, sendo que oito destes receberam os kits do Projeto das Penas Pecuniárias e estão atuando nessa área, e outros dois trabalham de carteira assinada em outras empresas.

Atualmente, há 102 postos de trabalho em todo o estado, sendo 25 na capital e 77 nas unidades penitenciárias do interior. No total, são 3.549 apenados trabalhando. Segundo o chefe da Divisão de Trabalho, Produção e Renda, Luizinho da Mata, a seleção dos detentos é feita pela comissão de avaliação.

"O Iapen, desde o início, implementa boas práticas, com o trabalho como ferramenta de ressocialização, além da capacitação por meio de entidades. O trabalho agrega a atividade em si e a capacitação para, posteriormente, pleitear uma vaga de emprego no mercado de trabalho quando egresso. O trabalho, juntamente com a capacitação, o credencia a estar inserido no mercado de trabalho, ressocializado e com uma profissão", frisou.

Ao todo, mais de 3 mil presos trabalham dentro e fora das unidades prisionais

Arquivo/Iapen-AC

Possibilidade de mudança

Nasseilde trabalhou de tudo um pouco dentro do presídio e comentou que o trabalho também o dignificou, detalhes estes que ele conta na obra literária que contou com um lançamento com direito a música ao vivo, coffee-break e cerimonial.

O processo de organização do lançamento do livro de Nasseilde não foi fácil. Ele conta que teve que definir local, horários e demais detalhes técnicos, além de verificar a produção dos exemplares. Segundo ele, o apoio foi dado pela Fundação de Cultura Elias Mansour (FEM) após ter apresentado a proposta e o material escrito.

Indagado sobre o que espera alcançar com o conteúdo do livro, ele disse ter ciência de que ainda há uma barreira que dificulta com que pessoas que estão na criminalidade tenham interesse em ler qualquer tipo de livro. Contudo, ressaltou que o 'trabalho de formiguinha' pode possibilitar uma 'colheita' no futuro, seja este distante ou próximo, assim como aconteceu com ele, quando lhe ofereceram o primeiro exemplar para ler enquanto começava o cumprimento de sua pena.

Talvez se não fosse por meio desta semente germinada, em meados de 2007 em um pavilhão do presídio de Rio Branco, ele não teria sido desvendado também pelos mecanismos de ressocialização que o reintegrou na sociedade.

"O mais importante é você despertar, na mente das pessoas, a possibilidade da mudança de uma forma geral, não só pela questão da espiritualidade, mas pela transformação social que ela alcança através da educação e da leitura, porque a leitura foi o primeiro trampolim de mudança na minha vida. Não lembro de ter lido um livro por inteiro antes de ter ido para a prisão. Se não fosse a leitura, eu seria um homem cego", finalizou.

Nesseilde Andrade escreveu livro "Desvendado por Deus", onde conta a história de vida dele desde às prisões até o processo de ressocialização no Acre

Arquivo pessoal

VÍDEOS: g1

Fonte: G1

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