Na Austrália, mulher foi libertada depois que cientistas conseguiram provar a verdadeira causa da morte dos bebês -- mutações genéticas raras. E o Fantástico conversou com a principal pesquisadora desse caso. De condenada pela morte dos filhos a inocentada pela ciência
Confrontada pela Justiça, Kathleen Folbigg responde se matou cada um dos quatro filhos:
- Você matou o Caleb?
- Não!
- Você matou o Patrick?
- Não...
- Você matou a Sara?
- Não.
- Você matou a Laura?
- Não.
Parece história de filme. Sobre uma vida que é uma sucessão de tragédias.
Quando Kathleen tinha 18 meses, a mãe dela foi assassinada a facadas pelo marido. Ela cresceu ora vivendo em instituições de menores, ora com família adotiva.
Se casou em 1987, aos 20 anos, e teve o primeiro filho, Caleb, em 1989.
Um ano depois, a australiana engravidou de novo. Outro menino: Patrick, que morreu com oito meses.
Em 1992, aconteceram a terceira gravidez e a terceira morte: Sarah, com dez meses.
A quarta filha, Laura, nascida em 1997, também morreu – tinha um ano e meio.
As três primeiras mortes foram inicialmente atribuídas à síndrome da morte súbita infantil. Foi a quarta morte que levantou suspeitas: um médico forense marcou a causa como "indeterminada".
Os casos foram para a Justiça.
A mãe era a única pessoa que estava em casa quando cada filho morreu.
Promotores do caso chegaram a dizer que era mais fácil porcos voarem do que quatro bebês de uma mesma família morrerem de causas naturais tão cedo e ao longo de tanto tempo.
Enquanto ainda era casado com Kathleen, Craig Folbigg entregou à polícia diários da esposa, com anotações que o fizeram suspeitar dela. "Com a Sarah, tudo o que eu queria era calar sua boca. E um dia ela se calou", dizia uma passagem.
Kathleen sempre negou as acusações.
Em 2003, aos 36 anos, Kathleen foi condenada a 40 anos de prisão.
Dezesseis anos depois, com Kathleen ainda na cadeia, entrou nessa história uma personagem que mudou absolutamente tudo: a ciência. Uma pesquisadora, ao fazer testes genéticos, o sequenciamento do genoma das crianças e da mãe, levantou dúvidas sobre a decisão da justiça australiana - e defendeu que Kathleen tinha que ser solta.
Era o início da reviravolta do caso.
"Um jovem advogado me procurou pra falar desse caso, que ele tinha visto na tv. Ele me perguntou: 'Carola, você acha que pode ter alguma causa genética por trás das mortes dessas crianças? A tecnologia avançou para gente investigar isso?'. E, sim, a tecnologia tinha avançado muito da condenação em 2003 pra cá. Eu achei que valia a pena ir em frente e disse que sim", conta Carola Vinuesa, cientista e diretora da pesquisa.
A partir do sangue retirado no teste do pezinho, Carola descobriu que as duas filhas de Kathleen - Sarah e Laura - carregavam uma variante até então desconhecida do gene calm2.
Esse gene regula uma proteína chamada calmodulina, que tem um papel importante pros níveis de sódio, potássio e cálcio – que ajudam a manter uma função cardíaca saudável. As variações dessa proteína podem causar arritmia cardíaca e morte súbita.
Carola ainda descobriu que uma variante semelhante tinha sido encontrada no mês anterior numa família de uma cidade da Europa. Um menino de 4 anos morreu repentinamente e a irmã de 5 sofreu uma parada cardíaca. Esse caso foi usado pela defesa de Kathleen.
Os cientistas descobriram ainda que os filhos Caleb e Patrick tinham variantes raras de outro gene, o BSN– associado a casos de epilepsia.
Vinte e sete pesquisadores publicaram as evidências num artigo que apresentava os resultados de todo o sequenciamento do genoma de Kathleen e das crianças.
As descobertas convenceram 150 dos principais cientistas do mundo, incluindo dois vencedores do Prêmio Nobel, que assinaram uma petição pra que o caso fosse reavaliado.
A justiça acabou decidindo que existem "dúvidas razoáveis" sobre a culpa de Kathleen e que as crianças podem, sim, ter morrido de causas naturais.
Kathleen foi solta no início de junho.
"Minha eterna gratidão vai pros meus amigos e familiares, especialmente pra minha melhor amiga, a Tracy, e toda a família dela. Sem eles, eu não teria sobrevivido a toda essa provação", afirmou Kathleen.
"Ela ficou vinte anos na prisão. O sistema falhou com ela a cada passo. Como você se sentiria se fosse com você?", pergunta a advogada da australiana, Rhanee Rego.
O ex-marido disse que, mesmo a justiça tendo determinado que Kathleen fosse solta, ele não muda de opinião. Craig inclusive se recusou a dar amostras do próprio DNA à defesa dela.
A amiga Tracy Chapman disse que Kathleen está perplexa com a modernidade dos celulares, vinte anos depois – encantada, por exemplo, que dá pra fazer vídeo-chamada.
"Ela dormiu pela primeira vez depois de muito tempo numa cama de verdade. Ela fez um chá numa xícara de louça de verdade, com colheres de verdade, o que parece bem básico pra todos vocês. Comemos pizza, pão de alho... ela só quer poder viver a vida que perdeu nos últimos 20 anos".
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